quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Sobre a memória

"Perdi várias coisas em Buenos Aires. pela pressa ou por azar, ninguém sabe onde foram parar. Saí com um pouco de roupa e um punhado de papéis.
Não me queixo. Com tantas pessoas perdidas, chorar pelas coisas seria desrespeitar a dor.
Vida cigana. As coisas me acompanham e vão embora. São minhas de noite, perco-as de dia. Não estou preso às coisas; elas não decidem nada.
Quando me separei de Graziela deixei a casa de Montevidéu intacta. Ficaram os caracóis de Cuba e as espadas da China, os tapetes da Guatemala, os discos e os livros e tudo. Levar alguma coisa teria sido um roubo. Tudo isso era dela, tempo compartido, tempo que agradeço; e me larguei no caminho, rumo ao não sabido, limpo e sem carga.
A memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela não perde o que merece ser salvo.
Febre de meus adentros: as cidades e as gentes, soltas da memória, navegam para mim: terra onde nasci, filhos que fiz, homens e mulheres que me aumentaram a alma."

Eduardo Galeano - "Dias e noites de amor e de guerra".